quinta-feira, 27 de maio de 2010

Mães sem internet

Minha colega Simone Fernandes dizia hoje que não compreende como sua mãe dava conta de atender quatro filhos, atuar como professora, estudar e, ainda, realizar seus afazeres domésticos. "Não sei o que seria de minha vida se tivesse um filho!", declarou minha colega, aflita com a hipótese.

Mãe de "apenas" um menininha, estudante, professora, jornalista, dona de casa e esposa (muitas vezes, para a tortura do marido, a ordem é mesmo essa), fiquei matutando como de fato a mãe de minha xará administrava sua missão. Subitamente - passos apressados pela Padre Chagas durante o expediente - descobri!!!

Eureka!

Na época de Dona Lúcia, não havia internet, blog, facebook, orkut, twitter e mais um bando de atrações virtuais que consomem um tempo fabuloso de nosso cotidiano! Posso parecer careta - vocábulo de minha infância -, insensível, radical. O mundo digital é precioso e funciona como uma poderosa ferramenta que aproxima as pessoas e lhes dá acesso à informação e ao conhecimento. Sim!!! Reconheço e o usufruo com encantamento! Mas, confesso, há dias em que, se pudesse, não transitaria tanto pela virtualidade... Minha paciência se esgota com tanta demanda! E o tempo dedicado a minha filha também se reduz.

Ser mãe de quatro filhos em tempos sem internet, certamente, já foi desafio grandioso - e admiro mulheres como a mãe de minha colega! Porém, ouso defender: no atual mundo das ilimitadas redes sociais, penso que perdemos cada vez mais o controle de nosso tempo. Contraditoriamente, talvez seja este o preço a pagar pelos benefícios da tecnologia.

Há um sábio dito de meu marido que recupero neste momento para reforçar minha tese. Diz Renato com sensatez: "A rede que nos liberta é a mesma que nos escraviza." Seguindo sua constatação, penso que a rede que nos oferece o mundo é a mesma que nos absorve tanto tempo quanto o fazem nossos filhos.

sábado, 8 de maio de 2010

Mãe, me conta uma história?

"Filhos, por que tê-los?" Com palavra de mãe, responderia ao poeta Drummond: filhos, a vida é tão intensa ao conhecê-los... Da singular relação nascida com eles, descobre-se que é possível existir um sentimento único e incondicional, carregado de ensinamentos para o resto da existência. Por isso, ser mãe é tarefa exigente, doação e fortaleza, sensibilidade e, especialmente, capacidade de se reconhecer como ser imperfeito, em eterna aprendizagem. Sim, pois podemos até errar com nossos filhos, mas, certamente, com eles vamos sempre aprender, redescobrindo o mundo em cada etapa de suas vidas. Assim tem sido comigo. Há oito anos, Manoela me ensina, me desafia, me revela a felicidade.

Escrevo, pois, neste Dia das Mães, sobre uma atividade especial e muito prazerosa que compartilhamos. Refiro-me a uma das mais antigas e envolventes práticas da maternidade: a contação de histórias. Atualmente, em nossa rotina, ela figura entre as obrigações escolares. Mas, cá entre nós, é, sem dúvida, a mais adorável das obrigações! Um de nossos momentos felizes!

Desde tempos remotos, as crianças se encantam com as narrativas fantásticas a elas contadas. Atualmente, os livros ocupam espaço especial em suas vidas e a leitura do mundo já se inicia nos mais tenros meses de idade. Livros de pano ou para banho, tradicionais ou virtuais, seja qual for seu formato, sua textura e cores, sejam eles em verso ou prosa, apreciá-los com minha filha sempre foi e permanece uma deliciosa troca, divertida hora de aconchego e reflexão.

Psicanalista e escritor dedicado à literatura infantil, o médico gaúcho Celso Gutfreid já publicou um livro sobre a importância da literatura para um desenvolvimento saudável. Em O Terapeuta e o Lobo - A utilização do conto na psicoterapia da criança, explica que a narração de histórias, além de aproximar os pequenos daqueles que os acompanham, é capaz de levá-los a "construir sua identidade, a sentir, pensar, imaginar, imaginando também uma outra história quando a história real é terrível e gera sofrimento." É mesmo belíssimo este trabalho de Gutfreid, competente escritor, capaz de transformar sua tese em obra acessível ao público leigo. Vale dizer que o autor também escreve para crianças. Com ele descobrimos a história do menininho Freud. Lembra, filha? Aquele cujo cachorrinho se chamava Ego!

É certo que não lembramos de todas as leituras feitas, menos ainda de seus detalhes. Mas, como dizia Freud, as "esquecidas" permacecem em nosso insconsciente. Mais importante ainda: em algum momento elas saciaram um desejo, nos deram prazer. Pois é, sobre isso Freud tem um monte de explicações... E se todos precisamos que belas histórias encham de cor e poesia o dia a dia e revigorem a imaginação, na infância elas são fundamentais, preciosas lembranças que um dia nossos filhos contarão aos seus.

Obrigada, filha, por ouvir minhas contações! Te amo!

domingo, 25 de abril de 2010

Silvestrin, poesia e uma lição sobre ensino

Ricardo Silvestrin é autor de textos que merecem ser lidos a cada semana. Pena que, por vezes, esqueço de fazê-lo! Na última quinta, sua crônica, publicada em ZH, configura-se uma pérola para professores, pais, mães e demais interessados em pensar sobre poesia, arte e qualidade de ensino para nossos pequenos leitores, tudo isso "junto ao mesmo tempo agora", como já diziam os Titãs.

Usufruam de sua bela história!


RICARDO SILVESTRIN

Uma grande pergunta

Estava conversando com uma turma de alunos de primeira série. Hoje, primeira série é formada por crianças de cinco e seis anos. Tinham trabalho com alguns poemas meus do livro Pequenas Observações sobre a Vida em Outros Planetas.

Convidei-os a encontrar comigo a palavra sim escondida dentro de outras palavras no poema Planeta Sim. Disse o poema: “No Planeta Sim, tudo é sempre assim:”. Logo disseram sim dentro do assim. Segui: “- Pai, posso não sei quê?/A resposta é simples: sim.”. Disseram as crianças: sim dentro do simples, no começo da palavra. Continuei: “- Mãe, eu quero isso e aquilo:/sim, sim, sim.”. Falei que agora viria o sim disfarçado, passando por dentro de outras palavras: “É um sim sem fim.”. Mostrei que, no sem, o sim colocou um e na frente do i e passou disfarçado. E, no fim, o sim botou um f na frente do s e passou escondido. Agora disse que o sim viria de costas, com o contrário dele: “Tem outra resposta/no Planeta Sim?/Não.” O não, o outro lado do sim.

Falei isso tudo para mostrar a eles a sonoridade das palavras. A escola e a cultura parecem ouvir e nomear só a rima. Só fim da palavra. Como se as palavras tivessem som apenas no final. Também estava mostrando a relação entre som e significado. O poema do Planeta Sim era todo criado com a palavra sim e seu som. Isso depois de responder a várias perguntas de como se faz um poema, de onde se tira as ideias. Mostrei que todo poema nasce, antes de mais nada, da criatividade com as três partes da palavra, o significado, o som e o desenho. Mas, sobretudo, pelas surpresas com o sentido, com as ideias.

Chegou um momento em que as perguntas eram quase sempre a mesma: como é que uma pessoa faz isso? Eu disse que não sabia como nem por quê. Apenas fazia e gostava. Até que uma das perguntas foi de uma profundidade que me fez comprovar mais uma vez que a arte é algo do ser humano. Seja ele de que idade for. Não se vive sem uma forma de arte porque é algo que nos constitui como indivíduos. Não é apenas um lazer ou um prazer, mas uma questão pela qual temos o maior interesse.

A pergunta do piá de cinco ou seis anos foi se eu descubro essas coisas ou as invento. Repare na sutileza entre descobrir e inventar. Depois de acordar do transe, da surpresa, respondi que faço as duas coisas. Por exemplo, achar a palavra sim dentro de outras palavras é uma descoberta. Estava ali para ser descoberto. Já criar poemas como o Planeta Poft, em que começo assim: “Em Poft, o pum é perfumado.”. Isso é invenção. Nunca fui a esse planeta. Eu o inventei.

O colégio dessa vez era o Anchieta. Mas questões assim têm aparecido em todas as escolas por onde ando. Falamos de poesia. Conversamos sobre estética, sobre arte. Porque existe também uma inteligência artística, para formular de uma maneira que está na moda.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Síndrome de Macunaíma

Reproduzo abaixo artigo do professor Luis Carlos Lopes publicado, ontem, no site Carta Maior. Concordo plenamente com sua crítica a um discurso extremamente conservador acerca da tão propalada incompetência do brasileiro, de sua falta de caráter, etc e tal.

Importo-me com isso, pois penso que tal discurso, de tanto ser repetido, tornou-se verdade... Na análise de Lopes: "O racismo brasileiro fundamentou, e ainda fundamenta, o automenosprezo de segmentos da população, que imaginam o país como inferior e sem solução. As elites adoram e disseminam este sentimento, que é fortemente conservador e útil aos propósitos dos mais ricos e poderosos."

Recomendo a leitura do texto em sua íntegra (abaixo ou no site):
(http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4553&alterarHomeAtual=1)


Brasil: automenosprezo e racismo

Ao contrário de vários povos, o brasileiro tem a mania de se automenosprezar, de se achar menor e de assumir culpas de fatos e problemas que não são seus. Se há corrupção, é que todos seriam corruptos. Facilmente, deslizes pequenos cometidos pelos pobres são comparados aos atos deliberados agentes de Estado e de ladrões engravatados (empresários) que enriquecem com o dinheiro público. Segundo este vício terrível, os brasileiros seriam menores por terem origem nos negros africanos, nos índios das Américas e nos portugueses, vindos para cá para roubar. O caráter nacional da população desse país teria nascido torto e sem solução. Por compensação, os habitantes do Brasil teriam uma natureza geográfica exuberante e, Deus, de fato, seria nascido aqui.

Estas afirmações não são tão difíceis de serem compreendidas. Observe-se que nelas há uma tentativa de ocultar o que é possível ver a olho nu. A autofagia brasílica tem origem colonial, foi refundada no Império e reafirmada na República. Nela, se misturam o olhar do colonizador e criador dos fundamentos culturais dominantes do país com o dos colonizados que se miraram no espelho dos que vieram para cá e se apossaram deste pedaço das Américas. Nesta visão, tudo de bom era o que vinha de fora, aqui era o lugar para acumular riquezas de modo fácil e usar dos lucros para comprar as mercadorias do além-mar.

Os racismos antinegros e anti-ameríndios têm a idade do início da colonização, logo, cinco séculos. A inferiorização das maiorias foi estendida aos seus descendentes, gerando um sentimento de menoridade e incapacidade até mesmo nas elites mestiças. Este modo de ver o mundo deixou raízes profundas e se escamoteou em vários modos de dizer que os brasileiros eram um povo de segunda classe. Jamais isto foi inteiramente superado, persistindo de algum modo até o século XXI. O modo de falar isto já não é o mesmo do passado. Mas, o racismo continua presente em fontes insuspeitas, por exemplo, nas emissões da tv aberta. Nelas, os índios praticamente não existem e os negros, apesar de serem a maioria dos habitantes do Brasil, têm apenas uma cota informal, conseguida com bastante dificuldade e muito recentemente.

O pano de fundo de tudo isto foi os quatro séculos de escravidão dos afrodescendentes que embutiram os esquecidos dois séculos de cativeiro dos nativos. Mesmo com a escravidão em crise na segunda metade do XIX, quem eram os que não eram escravos? Os imigrantes europeus que aportaram no Brasil, aqui encontraram condições de vida bem próximas as da escravidão. Como nos EUA coloniais, usou-se, com eles, o sistema de servidão por contrato. Neste, os que vinham estavam sempre devendo aos fazendeiros e as empresas que os traziam. Os escravos alforriados na mesma época, deviam quase sempre obrigações aos seus ex-senhores. Não eram mais escravos de direito, mas continuavam próximos à situação de escravos de fato. A abolição legal da escravidão (1888) representou uma importante mudança. Entretanto, os estoques de populações originárias do passado escravista continuaram a ser discriminados, até mesmo pelos imigrantes brancos que vieram substituí-los, progressivamente, desde o governo do Pedro II.

O racismo brasileiro fundamentou, e ainda fundamenta, o automenosprezo de segmentos da população, que imaginam o país como inferior e sem solução. As elites adoram e disseminam este sentimento, que é fortemente conservador e útil aos propósitos dos mais ricos e poderosos. Felizmente, desde há muito, há quem não concorde com nada disto e lute para dizer o óbvio. O Brasil é um país como outro qualquer. Do ponto de vista moral, não é menor e nem maior. Seu povo tem qualidades e defeitos, como qualquer outro. O que existe aqui pode ser modificado para melhor ou para pior, dependendo de quem estiver no poder e do comportamento dos governados.

Oficialmente, o país não é mais racista. Desde a era Vargas, o Estado foi abandonando pouco a pouco uma postura discriminadora. Trocou o racismo escancarado do Império e da República Velha pelo mito questionável e problemático da democracia racial. O fazer político precisava de se organizar, isto é, os governantes necessitavam inventar um povo de governados. Precisava se dirigir diretamente à maioria da população, tal como Vargas o fazia: “Trabalhadores do Brasil...”. A mestiçagem foi considerada um bálsamo, sem que o velho racismo desaparecesse por completo. Afastado de uma militância estatal ostensiva, ele se refugiou nas estruturas sociais, dando um jeito de se manter. Memoráveis lutas antiracistas fizeram o combate a esta ideologia, nos últimos cinqüenta anos. Entretanto, apesar de cada vez mais acuado, denunciado e criminalizado, o racismo continua presente no cotidiano brasileiro.

Ninguém mais tem a coragem de dizer publicamente que os negros, os índios e os mestiços são povos inferiores. Mas, eles continuam tendo níveis de segregação facilmente constatáveis nos dados que indicam que eles são os que: são mais pobres; mais estão presentes nos presídios; são os maiores números de desempregados; enfrentam piores condições de vida; têm suas histórias sonegadas no ensino de qualquer nível; menos aparecem nas grandes mídias.

Há exceções importantes. No futebol, a negritude e a mestiçagem brasileiras são celebradas como gênios da raça. No carnaval, como diz o poeta, “napoleões retintos”, desfilam para os brancos do Brasil e do mundo, encantando as audiências e escondendo uma dura realidade. Nos últimos anos, foram possíveis o aparecimento e desenvolvimento de classes médias negras, ávidas para consumir e se diferenciar. O que continua como dantes é a ignorância sobre as histórias dos povos de origem africana que aqui aportaram e, ainda mais forte, o silêncio sobre a história das populações indígenas encontradas pelos portugueses no século XVI. Os jovens sabem bastante sobre as últimas novidades de consumo midiático e tecnológico. Nada, ou quase nada, conseguem alcançar sobre suas origens. Mesmo que na Internet exista bastante informação sobre estas coisas. O problema é que elas são raramente acessadas e são rarefeitas e pulverizadas no universo comunicacional caótico do tempo presente.


Luís Carlos Lopes é professor e autor do livro "Tv, poder e substância: a espiral da intriga", dentre outros