sábado, 21 de maio de 2011

O maior de todos os erros

Sabe-se que parte da mídia busca simplificar toda ordem de tema, fenômeno ou acontecimento mais complexo. Ela própria deve reconhecer que assim o faz. Afinal, como tornar acessíveis os mais complicados assuntos? Como fazer-se legível por públicos heterogêneos? O problema dessa prática, contudo, é confundir simplicidade com reducionismo. É apresentar os fatos a partir de uma única perspectiva. Ou, o que é ainda pior: sapatear sobre a ética, apresentando versão não verdadeira dos fatos. Pois foi exatamente isso que ocorreu, nessa semana, em boa parte dos veículos de mídia, no tratamento do livro distribuído pelo MEC.

Ao longo da semana, acompanhei a notícia e sua repercussão em jornais, tevês, rádios e blogs. O debate inflamado, por um lado, deixou-me feliz! Utopia ou não, imagino o dia em que língua e linguagem sejam vistas pelos seus usuários de modo apaixonado, tal como nós, estudiosos desse campo as vemos. Contudo, infelizmente, nesse momento, a paixão cede lugar ao terror – obviamente infundado!

Mas, retornemos ao olhar. Um dos pontos mais surpreendentes do debate é ver a quantidade de pessoas que, mesmo sem ler o livro, acreditaram cegamente no que a mídia lhes apresenta: “o livro ensina que podemos falar e escrever errado”. Alerta! Embora o capítulo “Falar e Escrever” tenha como objetivo promover a reflexão acerca das diferenças entre fala e escrita e cite variedades não reconhecidas como padrão, alguns veículos, seus entrevistados e articulistas enxergaram no livro ensinamentos da variedade popular. Repito: o livro estaria ensinando a falar e escrever errado! Motivo por que os “defensores da língua” não se deixaram calar (como se ela precisasse de “guarda-costas”, como bem comenta a jornalista Cláudia Laitano).

Daí, fiz questão de ler o livro e acompanhar as entrevistas e artigos de meus colegas (professores de português, linguistas e jornalistas) nos jornais e outros veículos, bem como os de professores de outras áreas. Ressalvas à parte, meu alento foi ver que nem tudo está perdido na mídia. É claro que não! Vejamos parte do que foi veiculado:


“Na polêmica com os livros do MEC, muita gente deu opinião sem examinar o livro, lendo coisas que não estavam escritas. Foi como uma gota d’água em meio ao descontentamento unânime com o ensino no Brasil. Isso porque a pedagogia do coitadismo, que permite tudo aos alunos e acha feio cobrar esforço e desempenho, realmente tem ajudado a piorar nossos índices já vergonhosos. Também é verdade que o discurso de respeito às variantes da língua não pode servir como desculpa para que professores e alunos abram mão de estudar a norma culta, que nos unifica e desafia.

Mas um livro que ensina que uma língua é mais rica e complexa do que a sua gramática não está necessariamente invocando o demônio da ignorância. Está apenas reconhecendo o óbvio: Inês vive.” (Cláudia Laitano, jornalista e colunista de Zero Hora, 21 de maio de 2011)

“A linguagem é como nossa roupa, que deverá sempre estar de acordo com a ocasião, seja ela informal, seja solene. A inversão dos empregos de cada registro costuma ter resultados catastróficos, como quando numa entrevista de emprego o candidato se vale de gírias, comprometendo sua imagem,” (Prof. Landro Oviedo, colaborador do Jornal Correio do Povo, 19 de maio de 2011).

“Encontrar uma forma não prevista na gramática como uma possibilidade adequada em um livro distribuído pelo Ministério da Educação assusta, e a primeira reação é acreditar que os estudantes vão ficar orgulhosos de falar errado ou simplesmente vão repetir as incorreções no dia a dia. (...) Esse susto, que desencadeou um debate nacional interessante nos últimos dias, faz sentido. Mas também faz sentido pensar que a reflexão sobre as diferenças entre falar e escrever podem ser tema de debate na sala de aula, acreditando que os alunos têm condições de compreender a forma gramatical da norma escrita e descobrir o limite de uso das formas orais. E aí, novamente, o professor é a figura-chave: é ele quem precisa orientar o estudante para entender essas peculiaridades e, assim, adquirir consciência sobre a linguagem falada e a escrita.” (Angela Ravazzolo, editora de Ensino do jornal Zero Hora, 19 de maio de 2011)

“A polêmica não tem fundamento. Ela está estabelecida nas informações do primeiro capítulo do livro, que é sobre a diferença entre escrever e falar. Ele é muito adequado por que diz que a escrita é diferente da fala e que na fala existe muito mais variação do que na escrita. Faz a distinção entre a variedade popular e a variedade culta, e mostra que elas têm sistemas de concordâncias diferentes. Eles dizem que na variedade popular basta que o primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Quando os autores explicam que é possível falar “os peixe”, não estão querendo dizer que esse é o certo, nem vão ensinar a pessoa a escrever errado. Isso é como as pessoas já falam. A escola tem é que ensinar a norma culta e o livro faz isso. O objetivo do capítulo é apenas deixar claro que uma coisa é falar e outra é escrever.” (Ana Maria Stahl Zilles, doutora em linguista (UFRGS), entrevista ao jornal Zero Hora, 19 de maio de 2011)

“Tem uma expressão que me incomoda profundamente: preconceito linguístico. Por que preconceito? Se eu disser que uma pessoa está pintando uma porta errada é preconceito? Não, estou avisando que está errado. O problema é que eles se colocam em uma posição utópica. Esse é o maior câncer no ensino do português e é por isso que o português está tão ruim. Tem milhares de modalidades de falar e escrever, todas válidas. As pessoas vivem e morrem com aquela linguagem, mas a escola não tem nada a ver com isso. Ela tem de ensinar uma que é única, que faz todos serem da mesma comunidade linguística. Segundo eles, isso é escolhido pela burguesia, que decide qual é a melhor e exclui a que é do povo. Mas a do povo é incompleta. Os ricos adotaram a norma culta por que é melhor.” (Prof. Cláudio Moreno, entrevista ao jornal Zero Hora, 19 de maio de 2011)

“Longe de mim fazer a apologia do erro, embora alguns leitores apressados, desses que jamais captam a sutileza das coisas e já saem denunciando horrores, venham certamente a me acusar disso, mas temo que algumas guerras estejam perdidas. A mesóclise morreu. A ênclise (colocação no pronome oblíquo átono depois do verbo) está agonizando. As línguas são como tudo na vida. Há quase sempre perdas e ganhos. O princípio maior é o da economia: busca-se dizer mais com menos. Não conheço uma só pessoa "normal" que saiba a diferença entre "por que" e "por quê" (por que as línguas mudam? As línguas mudam por quê?). Frase pomposa para terminar: a língua é um sistema de hierarquia social. Como o gosto. E o sexo.” Juremir Machado, professor, escritor e colunista do Jornal Correio do Povo, 18 de maio de 2011).

“A controvérsia provocada não é nova e repete, com outras abordagens, um falso conflito entre a linguagem oral, em especial de populações de baixa escolaridade, e a chamada linguagem culta. A educação formal de adolescentes, à qual o livro se destina, é desafiada a lidar com sabedoria com esse confronto, bem ao gosto de linguistas e gramáticos, para ensinar aos jovens o que eles necessitam de fato aprender. E o que precisam, em primeiro lugar, numa aula de português, é compreender e poder exercitar normas de ortografia e de gramática. Nada disso significa que a língua não evolua e passe, como ocorreu recentemente, por reformas, atualizações e a incorporação de expressões regionais.” (Editorial de Zero Hora, 17 de maio de 2011)

“A língua é organismo vivo, com trajetória que atravessa os tempos, em que assimila transformações, dá lugar a neologismos e aposenta arcaísmos. Isto significa, em outros termos, que palavras novas entram no léxico, conquistam espaço, enquanto outras, cansadas, vão ganhando aposentadoria. É mais ou menos assim que funciona.

Todos aprendemos uma língua em casa, com maior ou menor grau de cultura, mas é nível linguístico através do qual nos comunicamos. Como se trata de oralidade, a flexibilidade é evidentemente muito maior, e não poucas vezes nos permitimos liberalidades de acordo com a ocasião.

Dependendo do ambiente em que estamos, mesmo na oralidade, adequamos – se para tanto tivermos condições linguísticas – o nível da linguagem. É como vestimenta que usamos: esporte ou algo mais refinado de acordo com a ocasião, não é mesmo?

Quando se trata, porém, da língua escrita, a conversa é outra.” (Osvino Toillier, Professor de português e presidente do Sinepe/RS)


Pois bem! Lê-se de tudo! Os fragmentos citados rendem uma saborosa e sempre pertinente reflexão. Entretanto, reforço: o que causa espanto é ver – como também observa o linguista e professor da Unicamp Sírio Possenti – a afirmação que o livro “ensina a escrever errado”! Se existe a aprovação quanto ao uso da norma popular em determinadas situações, penso que essa questão mereça ser debatida. Embora – cá entre nós – saibamos todos que não usamos a norma padrão em todos os contextos de nossas vidas! O que é maravilhoso!!!

Engraçado é ver que a falta de concordância da primeira pessoa do plural com o verbo “arrase” mais a língua do que a falta de concordância entre a segunda pessoa do singular e o verbo, como o fazem os gaúchos. É como se “Nós pesca...” fosse mais errado do que “Tu pesca”! Todos sabemos que não! O erro é o mesmo! Porém, os mesmos gaúchos que se chocaram com as explicações do livro, sobre situações de fala que não exigem maior rigor, usam “tu sabe”, “tu foi”, “tu vai sair” na maior parte de suas falas. E não me refiro aos gaúchos com pouca escolaridade. Uso do imperativo é outra boa prova de que os mais bem formados gaúchos não utilizam a concordância correta em suas falas (“Faz isso agora” é o que se escuta no lugar de “Faze isso agora.) e não ouço ninguém se rebelar com o “maltrato” da língua. Preferir a próclise em início de frase é outro exemplo de que não falamos como escrevemos. E, assim, poder-se-ia enumerar muitas outras alterações da sintaxe.

A língua é muito mais do que instrumento de comunicação. É um patrimônio a ser preservado? Sim, é verdade. Mas é também o que nos constitui como sujeitos e, em parte por isso, o tema em debate seja tão palpitante. Em um de seus relatos sobre a relação sujeito e língua, Freud conta a história de uma mulher alemã que, prestes a dar à luz, conversa com o médico em francês. Na língua da moda, naquele momento da história, a paciente queria impressionar o médico com sua erudição e, em língua estrangeira, reclamava de suas dores. Para surpresa de Freud, o médico soube bem o momento certo de acreditar nas palavras da paciente. Esperou que ela expressasse suas dores em sua própria língua. Ou seja, nossas verdadeiras emoções são manifestadas em nossa língua materna, ou, no caso em debate, na mais informal das variedades da língua (segundo a formação de cada falante). Por isso, dizemos “Te amo!” e não “Amo-te!”, independentemente de nosso interlocutor ser tratado por “tu” ou por “você”. Daí, pergunto: é possível alguém defender que, em tais situações, não possamos falar assim? Respondo: não! Não é possível.

Defender o ensino da norma padrão da forma competente e atraente é pensamento de todos os professores e professoras. Isso não está posto em discussão no livro do MEC. Pelo contrário, é a norma padrão que nele é ensinada! Oferecer aos falantes da Língua Portuguesa a oportunidade de escolha - que nós privilegiados conhecedores da língua culta temos – deveria ser, como entendem muitos profissionais do campo das Letras e da Linguística, o ideal.

Acerca desse belíssimo assunto, que renderia um sem-fim de parágrafos, recomendo, ainda, a leitura, na íntegra, do artigo de Sírio Possenti.


Por ora, antecipo trecho curioso do artigo:

“PS 1 - todos os comentaristas (colunistas de jornais, de blogs e de TVs) que eu ouvi leram errado uma página (sim, era só UMA página!) do livro que deu origem à celeuma na semana passada. Minha pergunta é: se eles defendem a língua culta como meio de comunicação, como explicam que leram tão mal um texto escrito em língua culta? É no teste PISA que o Brasil, sempre tem fracassado, não é? Pois é, este foi um teste de leitura. Nosso jornalismo seria reprovado.

PS 2 - Alexandre Garcia começou um comentário irado sobre o livro em questão assim, no Bom Dia, Brasil de terça-feira: "quando eu TAVA na escola...". Uma carta de leitor que criticava a forma "os livro" dizia "ensinam os alunos DE que se pode falar errado". Uma professora entrevistada que criticou a doutrina do livro disse "a língua é ONDE nos une" e Monforte perguntou "Onde FICA as leis de concordância?". Ou seja: eles abonaram a tese do livro que estavam criticando. Só que, provavelmente, acham que falam certinho! Não se dão conta do que acontece com a língua DELES mesmos!!”

Para finalizar, quero deixar um recadinho: não gritarei de outro modo ao meu time do coração. Seguirei bradando:

“Ohhhhhhhhh, vâmu, vâmu, Inter!!! Vâmu, vâmu, Inter, Vâmu, vâmu, Intereeeeeeeeeer!!!!!!

VÍDEO
http://mediacenter.clicrbs.com.br/templates/player.aspx?uf=1&contentID=184099&channel=49

domingo, 27 de fevereiro de 2011

O dia em que as letras entristeceram

Pela grandeza do volume e a singularidade de seu trabalho, ele poderia intimidar leitores, desdenhar daqueles que também fazem do escrever sua profissão. Contudo, nunca o fez! Moacyr Scliar jamais deixou-se afetar pela imortalidade da Academia. Jamais revelou a arrogância que acompanha muitos intelectuais. Humanismo, beleza e prazer brotam de seus textos e sua amável figura inspira os melhores sentimentos. Como é linda a extensa obra de nosso escritor do Bom Fim e quão contundente é o seu legado para a literatura e para a medicina!

É um grande pesar saber que Scliar nos deixou hoje e não mais irá nos presentear com novas crônicas e livros, com seu saber e generosidade derramados em palavras com invejável fluidez! Quem mais, em nossos tempos, escreveu 70 livros em 73 anos?! Somente esse número já revela o seu talento para escrever e seu amor pelo ser humano!

Assim, ao registrar fragmentos de um de seus romances, manifesto minha singela homenagem, uma entre a de tantos leitores que hoje sentem-se abatidos, porém imensamente gratos pela obra do brilhante escritor, pelas lições de um exemplar humanista.

“A mim pouco importava. Tendo descoberto o mundo da palavra escrita, eu estava feliz, muito feliz. (...) Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho letra após letra, palavra após palavra, era algo que me deliciava. (...)

Diria a ele que agora minha vida tinha sentido, um significado: feia, eu era, contudo, capaz de criar beleza. Não a falsa beleza que os espelhos enganosamente refletem, mas a verdadeira e duradoura beleza dos textos que eu escrevia, dia após dia, semana após semana – como se estivesse num estado de permanente e deliciosa embriaguez.”


(Trechos de A mulher que escreveu a Bíblia, Moacyr Scliar)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Com azeite e com afeto

Há somente um lado correto para que se perfure uma lata de azeite de oliva. Embora rompesse o descansado almoço de feriado, a declaração não surpreendia. Irritava somente um tiquinho. Dita em brando tom, causava ligeiro incômodo por vir antecedida de impertinente interrogação.

- Quem abriu a lata desse jeito?

Ora, a possibilidade do ato não ter sido praticado por sua interlocutora era praticamente zero. Então por que ele utilizava-se de indagação retórica? O objetivo era criticar. Só podia. E a segunda indagação? Essa servia para enfatizar a incorreção do ato.

- Por que não foi aberto o bico dosador?

Mal pudera responder que o momento fora de pressa, por isso, impróprio para maiores cuidados na abertura do tal bico dosador da lata de azeite, a responsável por tamanho descuido doméstico recebeu a lição inspiradora desse texto:

- Perfurada desse lado, há que se curvar o punho para o suave derramamento do óleo no alimento que o aguarda. Veja: quando aberta desse outro lado - o correto -, apenas um leve inclinar da mão, sem precisar dobrá-la, já promove a colocação precisa do azeite.

Os meticulosos gestos do marido, virginiano, acompanhados de suas detalhadas e repetidas explicações, ilustravam com clareza à esposa, geminiana, a orientação a ser seguida.

- É claro que esse lado é ideal para os destros! Esse outro lado aqui seria adequado para os canhotos, recomendava o marido, que, ao depositar didaticamente o dedo indicador em uma terceira extremidade da lata, era interrompido pela franca inquisição da esposa, que - palavras masculinas ao longe – tentava imaginar conflitos alheios:

- Querido, sabia que o Pedro é geminiano e a Isa virginiana? O contrário de nós dois!

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Mães sem internet

Minha colega Simone Fernandes dizia hoje que não compreende como sua mãe dava conta de atender quatro filhos, atuar como professora, estudar e, ainda, realizar seus afazeres domésticos. "Não sei o que seria de minha vida se tivesse um filho!", declarou minha colega, aflita com a hipótese.

Mãe de "apenas" um menininha, estudante, professora, jornalista, dona de casa e esposa (muitas vezes, para a tortura do marido, a ordem é mesmo essa), fiquei matutando como de fato a mãe de minha xará administrava sua missão. Subitamente - passos apressados pela Padre Chagas durante o expediente - descobri!!!

Eureka!

Na época de Dona Lúcia, não havia internet, blog, facebook, orkut, twitter e mais um bando de atrações virtuais que consomem um tempo fabuloso de nosso cotidiano! Posso parecer careta - vocábulo de minha infância -, insensível, radical. O mundo digital é precioso e funciona como uma poderosa ferramenta que aproxima as pessoas e lhes dá acesso à informação e ao conhecimento. Sim!!! Reconheço e o usufruo com encantamento! Mas, confesso, há dias em que, se pudesse, não transitaria tanto pela virtualidade... Minha paciência se esgota com tanta demanda! E o tempo dedicado a minha filha também se reduz.

Ser mãe de quatro filhos em tempos sem internet, certamente, já foi desafio grandioso - e admiro mulheres como a mãe de minha colega! Porém, ouso defender: no atual mundo das ilimitadas redes sociais, penso que perdemos cada vez mais o controle de nosso tempo. Contraditoriamente, talvez seja este o preço a pagar pelos benefícios da tecnologia.

Há um sábio dito de meu marido que recupero neste momento para reforçar minha tese. Diz Renato com sensatez: "A rede que nos liberta é a mesma que nos escraviza." Seguindo sua constatação, penso que a rede que nos oferece o mundo é a mesma que nos absorve tanto tempo quanto o fazem nossos filhos.

sábado, 8 de maio de 2010

Mãe, me conta uma história?

"Filhos, por que tê-los?" Com palavra de mãe, responderia ao poeta Drummond: filhos, a vida é tão intensa ao conhecê-los... Da singular relação nascida com eles, descobre-se que é possível existir um sentimento único e incondicional, carregado de ensinamentos para o resto da existência. Por isso, ser mãe é tarefa exigente, doação e fortaleza, sensibilidade e, especialmente, capacidade de se reconhecer como ser imperfeito, em eterna aprendizagem. Sim, pois podemos até errar com nossos filhos, mas, certamente, com eles vamos sempre aprender, redescobrindo o mundo em cada etapa de suas vidas. Assim tem sido comigo. Há oito anos, Manoela me ensina, me desafia, me revela a felicidade.

Escrevo, pois, neste Dia das Mães, sobre uma atividade especial e muito prazerosa que compartilhamos. Refiro-me a uma das mais antigas e envolventes práticas da maternidade: a contação de histórias. Atualmente, em nossa rotina, ela figura entre as obrigações escolares. Mas, cá entre nós, é, sem dúvida, a mais adorável das obrigações! Um de nossos momentos felizes!

Desde tempos remotos, as crianças se encantam com as narrativas fantásticas a elas contadas. Atualmente, os livros ocupam espaço especial em suas vidas e a leitura do mundo já se inicia nos mais tenros meses de idade. Livros de pano ou para banho, tradicionais ou virtuais, seja qual for seu formato, sua textura e cores, sejam eles em verso ou prosa, apreciá-los com minha filha sempre foi e permanece uma deliciosa troca, divertida hora de aconchego e reflexão.

Psicanalista e escritor dedicado à literatura infantil, o médico gaúcho Celso Gutfreid já publicou um livro sobre a importância da literatura para um desenvolvimento saudável. Em O Terapeuta e o Lobo - A utilização do conto na psicoterapia da criança, explica que a narração de histórias, além de aproximar os pequenos daqueles que os acompanham, é capaz de levá-los a "construir sua identidade, a sentir, pensar, imaginar, imaginando também uma outra história quando a história real é terrível e gera sofrimento." É mesmo belíssimo este trabalho de Gutfreid, competente escritor, capaz de transformar sua tese em obra acessível ao público leigo. Vale dizer que o autor também escreve para crianças. Com ele descobrimos a história do menininho Freud. Lembra, filha? Aquele cujo cachorrinho se chamava Ego!

É certo que não lembramos de todas as leituras feitas, menos ainda de seus detalhes. Mas, como dizia Freud, as "esquecidas" permacecem em nosso insconsciente. Mais importante ainda: em algum momento elas saciaram um desejo, nos deram prazer. Pois é, sobre isso Freud tem um monte de explicações... E se todos precisamos que belas histórias encham de cor e poesia o dia a dia e revigorem a imaginação, na infância elas são fundamentais, preciosas lembranças que um dia nossos filhos contarão aos seus.

Obrigada, filha, por ouvir minhas contações! Te amo!

domingo, 25 de abril de 2010

Silvestrin, poesia e uma lição sobre ensino

Ricardo Silvestrin é autor de textos que merecem ser lidos a cada semana. Pena que, por vezes, esqueço de fazê-lo! Na última quinta, sua crônica, publicada em ZH, configura-se uma pérola para professores, pais, mães e demais interessados em pensar sobre poesia, arte e qualidade de ensino para nossos pequenos leitores, tudo isso "junto ao mesmo tempo agora", como já diziam os Titãs.

Usufruam de sua bela história!


RICARDO SILVESTRIN

Uma grande pergunta

Estava conversando com uma turma de alunos de primeira série. Hoje, primeira série é formada por crianças de cinco e seis anos. Tinham trabalho com alguns poemas meus do livro Pequenas Observações sobre a Vida em Outros Planetas.

Convidei-os a encontrar comigo a palavra sim escondida dentro de outras palavras no poema Planeta Sim. Disse o poema: “No Planeta Sim, tudo é sempre assim:”. Logo disseram sim dentro do assim. Segui: “- Pai, posso não sei quê?/A resposta é simples: sim.”. Disseram as crianças: sim dentro do simples, no começo da palavra. Continuei: “- Mãe, eu quero isso e aquilo:/sim, sim, sim.”. Falei que agora viria o sim disfarçado, passando por dentro de outras palavras: “É um sim sem fim.”. Mostrei que, no sem, o sim colocou um e na frente do i e passou disfarçado. E, no fim, o sim botou um f na frente do s e passou escondido. Agora disse que o sim viria de costas, com o contrário dele: “Tem outra resposta/no Planeta Sim?/Não.” O não, o outro lado do sim.

Falei isso tudo para mostrar a eles a sonoridade das palavras. A escola e a cultura parecem ouvir e nomear só a rima. Só fim da palavra. Como se as palavras tivessem som apenas no final. Também estava mostrando a relação entre som e significado. O poema do Planeta Sim era todo criado com a palavra sim e seu som. Isso depois de responder a várias perguntas de como se faz um poema, de onde se tira as ideias. Mostrei que todo poema nasce, antes de mais nada, da criatividade com as três partes da palavra, o significado, o som e o desenho. Mas, sobretudo, pelas surpresas com o sentido, com as ideias.

Chegou um momento em que as perguntas eram quase sempre a mesma: como é que uma pessoa faz isso? Eu disse que não sabia como nem por quê. Apenas fazia e gostava. Até que uma das perguntas foi de uma profundidade que me fez comprovar mais uma vez que a arte é algo do ser humano. Seja ele de que idade for. Não se vive sem uma forma de arte porque é algo que nos constitui como indivíduos. Não é apenas um lazer ou um prazer, mas uma questão pela qual temos o maior interesse.

A pergunta do piá de cinco ou seis anos foi se eu descubro essas coisas ou as invento. Repare na sutileza entre descobrir e inventar. Depois de acordar do transe, da surpresa, respondi que faço as duas coisas. Por exemplo, achar a palavra sim dentro de outras palavras é uma descoberta. Estava ali para ser descoberto. Já criar poemas como o Planeta Poft, em que começo assim: “Em Poft, o pum é perfumado.”. Isso é invenção. Nunca fui a esse planeta. Eu o inventei.

O colégio dessa vez era o Anchieta. Mas questões assim têm aparecido em todas as escolas por onde ando. Falamos de poesia. Conversamos sobre estética, sobre arte. Porque existe também uma inteligência artística, para formular de uma maneira que está na moda.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Síndrome de Macunaíma

Reproduzo abaixo artigo do professor Luis Carlos Lopes publicado, ontem, no site Carta Maior. Concordo plenamente com sua crítica a um discurso extremamente conservador acerca da tão propalada incompetência do brasileiro, de sua falta de caráter, etc e tal.

Importo-me com isso, pois penso que tal discurso, de tanto ser repetido, tornou-se verdade... Na análise de Lopes: "O racismo brasileiro fundamentou, e ainda fundamenta, o automenosprezo de segmentos da população, que imaginam o país como inferior e sem solução. As elites adoram e disseminam este sentimento, que é fortemente conservador e útil aos propósitos dos mais ricos e poderosos."

Recomendo a leitura do texto em sua íntegra (abaixo ou no site):
(http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4553&alterarHomeAtual=1)


Brasil: automenosprezo e racismo

Ao contrário de vários povos, o brasileiro tem a mania de se automenosprezar, de se achar menor e de assumir culpas de fatos e problemas que não são seus. Se há corrupção, é que todos seriam corruptos. Facilmente, deslizes pequenos cometidos pelos pobres são comparados aos atos deliberados agentes de Estado e de ladrões engravatados (empresários) que enriquecem com o dinheiro público. Segundo este vício terrível, os brasileiros seriam menores por terem origem nos negros africanos, nos índios das Américas e nos portugueses, vindos para cá para roubar. O caráter nacional da população desse país teria nascido torto e sem solução. Por compensação, os habitantes do Brasil teriam uma natureza geográfica exuberante e, Deus, de fato, seria nascido aqui.

Estas afirmações não são tão difíceis de serem compreendidas. Observe-se que nelas há uma tentativa de ocultar o que é possível ver a olho nu. A autofagia brasílica tem origem colonial, foi refundada no Império e reafirmada na República. Nela, se misturam o olhar do colonizador e criador dos fundamentos culturais dominantes do país com o dos colonizados que se miraram no espelho dos que vieram para cá e se apossaram deste pedaço das Américas. Nesta visão, tudo de bom era o que vinha de fora, aqui era o lugar para acumular riquezas de modo fácil e usar dos lucros para comprar as mercadorias do além-mar.

Os racismos antinegros e anti-ameríndios têm a idade do início da colonização, logo, cinco séculos. A inferiorização das maiorias foi estendida aos seus descendentes, gerando um sentimento de menoridade e incapacidade até mesmo nas elites mestiças. Este modo de ver o mundo deixou raízes profundas e se escamoteou em vários modos de dizer que os brasileiros eram um povo de segunda classe. Jamais isto foi inteiramente superado, persistindo de algum modo até o século XXI. O modo de falar isto já não é o mesmo do passado. Mas, o racismo continua presente em fontes insuspeitas, por exemplo, nas emissões da tv aberta. Nelas, os índios praticamente não existem e os negros, apesar de serem a maioria dos habitantes do Brasil, têm apenas uma cota informal, conseguida com bastante dificuldade e muito recentemente.

O pano de fundo de tudo isto foi os quatro séculos de escravidão dos afrodescendentes que embutiram os esquecidos dois séculos de cativeiro dos nativos. Mesmo com a escravidão em crise na segunda metade do XIX, quem eram os que não eram escravos? Os imigrantes europeus que aportaram no Brasil, aqui encontraram condições de vida bem próximas as da escravidão. Como nos EUA coloniais, usou-se, com eles, o sistema de servidão por contrato. Neste, os que vinham estavam sempre devendo aos fazendeiros e as empresas que os traziam. Os escravos alforriados na mesma época, deviam quase sempre obrigações aos seus ex-senhores. Não eram mais escravos de direito, mas continuavam próximos à situação de escravos de fato. A abolição legal da escravidão (1888) representou uma importante mudança. Entretanto, os estoques de populações originárias do passado escravista continuaram a ser discriminados, até mesmo pelos imigrantes brancos que vieram substituí-los, progressivamente, desde o governo do Pedro II.

O racismo brasileiro fundamentou, e ainda fundamenta, o automenosprezo de segmentos da população, que imaginam o país como inferior e sem solução. As elites adoram e disseminam este sentimento, que é fortemente conservador e útil aos propósitos dos mais ricos e poderosos. Felizmente, desde há muito, há quem não concorde com nada disto e lute para dizer o óbvio. O Brasil é um país como outro qualquer. Do ponto de vista moral, não é menor e nem maior. Seu povo tem qualidades e defeitos, como qualquer outro. O que existe aqui pode ser modificado para melhor ou para pior, dependendo de quem estiver no poder e do comportamento dos governados.

Oficialmente, o país não é mais racista. Desde a era Vargas, o Estado foi abandonando pouco a pouco uma postura discriminadora. Trocou o racismo escancarado do Império e da República Velha pelo mito questionável e problemático da democracia racial. O fazer político precisava de se organizar, isto é, os governantes necessitavam inventar um povo de governados. Precisava se dirigir diretamente à maioria da população, tal como Vargas o fazia: “Trabalhadores do Brasil...”. A mestiçagem foi considerada um bálsamo, sem que o velho racismo desaparecesse por completo. Afastado de uma militância estatal ostensiva, ele se refugiou nas estruturas sociais, dando um jeito de se manter. Memoráveis lutas antiracistas fizeram o combate a esta ideologia, nos últimos cinqüenta anos. Entretanto, apesar de cada vez mais acuado, denunciado e criminalizado, o racismo continua presente no cotidiano brasileiro.

Ninguém mais tem a coragem de dizer publicamente que os negros, os índios e os mestiços são povos inferiores. Mas, eles continuam tendo níveis de segregação facilmente constatáveis nos dados que indicam que eles são os que: são mais pobres; mais estão presentes nos presídios; são os maiores números de desempregados; enfrentam piores condições de vida; têm suas histórias sonegadas no ensino de qualquer nível; menos aparecem nas grandes mídias.

Há exceções importantes. No futebol, a negritude e a mestiçagem brasileiras são celebradas como gênios da raça. No carnaval, como diz o poeta, “napoleões retintos”, desfilam para os brancos do Brasil e do mundo, encantando as audiências e escondendo uma dura realidade. Nos últimos anos, foram possíveis o aparecimento e desenvolvimento de classes médias negras, ávidas para consumir e se diferenciar. O que continua como dantes é a ignorância sobre as histórias dos povos de origem africana que aqui aportaram e, ainda mais forte, o silêncio sobre a história das populações indígenas encontradas pelos portugueses no século XVI. Os jovens sabem bastante sobre as últimas novidades de consumo midiático e tecnológico. Nada, ou quase nada, conseguem alcançar sobre suas origens. Mesmo que na Internet exista bastante informação sobre estas coisas. O problema é que elas são raramente acessadas e são rarefeitas e pulverizadas no universo comunicacional caótico do tempo presente.


Luís Carlos Lopes é professor e autor do livro "Tv, poder e substância: a espiral da intriga", dentre outros