domingo, 27 de fevereiro de 2011

O dia em que as letras entristeceram

Pela grandeza do volume e a singularidade de seu trabalho, ele poderia intimidar leitores, desdenhar daqueles que também fazem do escrever sua profissão. Contudo, nunca o fez! Moacyr Scliar jamais deixou-se afetar pela imortalidade da Academia. Jamais revelou a arrogância que acompanha muitos intelectuais. Humanismo, beleza e prazer brotam de seus textos e sua amável figura inspira os melhores sentimentos. Como é linda a extensa obra de nosso escritor do Bom Fim e quão contundente é o seu legado para a literatura e para a medicina!

É um grande pesar saber que Scliar nos deixou hoje e não mais irá nos presentear com novas crônicas e livros, com seu saber e generosidade derramados em palavras com invejável fluidez! Quem mais, em nossos tempos, escreveu 70 livros em 73 anos?! Somente esse número já revela o seu talento para escrever e seu amor pelo ser humano!

Assim, ao registrar fragmentos de um de seus romances, manifesto minha singela homenagem, uma entre a de tantos leitores que hoje sentem-se abatidos, porém imensamente gratos pela obra do brilhante escritor, pelas lições de um exemplar humanista.

“A mim pouco importava. Tendo descoberto o mundo da palavra escrita, eu estava feliz, muito feliz. (...) Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho letra após letra, palavra após palavra, era algo que me deliciava. (...)

Diria a ele que agora minha vida tinha sentido, um significado: feia, eu era, contudo, capaz de criar beleza. Não a falsa beleza que os espelhos enganosamente refletem, mas a verdadeira e duradoura beleza dos textos que eu escrevia, dia após dia, semana após semana – como se estivesse num estado de permanente e deliciosa embriaguez.”


(Trechos de A mulher que escreveu a Bíblia, Moacyr Scliar)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Com azeite e com afeto

Há somente um lado correto para que se perfure uma lata de azeite de oliva. Embora rompesse o descansado almoço de feriado, a declaração não surpreendia. Irritava somente um tiquinho. Dita em brando tom, causava ligeiro incômodo por vir antecedida de impertinente interrogação.

- Quem abriu a lata desse jeito?

Ora, a possibilidade do ato não ter sido praticado por sua interlocutora era praticamente zero. Então por que ele utilizava-se de indagação retórica? O objetivo era criticar. Só podia. E a segunda indagação? Essa servia para enfatizar a incorreção do ato.

- Por que não foi aberto o bico dosador?

Mal pudera responder que o momento fora de pressa, por isso, impróprio para maiores cuidados na abertura do tal bico dosador da lata de azeite, a responsável por tamanho descuido doméstico recebeu a lição inspiradora desse texto:

- Perfurada desse lado, há que se curvar o punho para o suave derramamento do óleo no alimento que o aguarda. Veja: quando aberta desse outro lado - o correto -, apenas um leve inclinar da mão, sem precisar dobrá-la, já promove a colocação precisa do azeite.

Os meticulosos gestos do marido, virginiano, acompanhados de suas detalhadas e repetidas explicações, ilustravam com clareza à esposa, geminiana, a orientação a ser seguida.

- É claro que esse lado é ideal para os destros! Esse outro lado aqui seria adequado para os canhotos, recomendava o marido, que, ao depositar didaticamente o dedo indicador em uma terceira extremidade da lata, era interrompido pela franca inquisição da esposa, que - palavras masculinas ao longe – tentava imaginar conflitos alheios:

- Querido, sabia que o Pedro é geminiano e a Isa virginiana? O contrário de nós dois!